Nem tudo o que morre perde a força
SOMBRAS DO PASSADO
Athayde Martins
As paredes empoeiradas
mostram construção simples com muita
praticidade.
Na frente, instalados do lado esquerdo os sanitários masculinos, o
das mulheres ficam próximos à plataforma de embarque. Depois a tabacaria, a
banca com variedades de jornais e revistas, lojinha de miudezas e o bar, onde
se toma café preparado de forma rudimentar e sabor inigualável, além, é claro,
de bebidas, salgados e sucos naturais. Este pequeno comércio serve as
necessidades dos viajantes.
Encostado no bar, do
lado direito os sanitários femininos e logo adiante estacionamento para oito
ônibus. O guichê único fica nos fundos e trabalha com todas as empresas. Moças
simpáticas vendem passagens para os mais variados locais. Esta é a rodoviária
da cidade, ponto de chegadas e partidas de pessoas de todas as raças, cores e
credos. Uns chegam curiosos e outros partem deixando para trás sempre um
coração magoado, um rastro de saudade!
Eu ia partir, mas devido a confusão que fiz com o horário de verão que havia terminado, acabei chegando
uma hora mais cedo. Pra matar o tempo resolvi beber algo pra tirar a poeira da
garganta. Enquanto o balconista preparava meu café, fiquei olhando as fotos nas
paredes: rios, casas, barcos, animais, pessoas, peixes, entre outras. Uma em
particular me chamou a atenção: A de um
casamento com os noivos felizes e ao
fundo algo estranho, uma mulher dentro de um saco transparente com uma criança nos braços. E o mais esquisito é
que ela está na horizontal como que flutuando.
Minha curiosidade é maior, não resisto:
-Que foto estranha, o
que significa?
Gentilmente o rapaz
atrás do balcão responde:
-A história é longa e o
Billy Black adora contá-la.
Disse-me isso e apontou
para um senhor sentado num banco de madeira encostado na parede. O chapéu de
couro cobria-lhe os olhos e só se via seu queixo alongado. Meio temeroso me
aproximo:
-O senhor conhece a
historia da foto?
Calmamente me diz:
-Todo mundo por aqui
conhece, mas é melhor o jovem se sentar...
prendada filha de Chico Matos, homem
trabalhador e “meeiro” dos Andradas. Ele se encantou com a beleza da camponesa
e de pronto teve o consentimento para início do namoro. As famílias conhecidas
facilitavam o relacionamento do casal. O namoro de Genaro e Malvina durou dois
anos, tempo prolongado demais para os costumes da época. Com a pressão dos pais
não restou ao jovem outra alternativa a não ser oficializar o noivado.
Agora noivos, podiam planejar o futuro e
obviamente constituir uma família com a realização do casamento. Só faltava
marcar a data do enlace no civil e na igreja, conforme ditavam as rígidas
regras da sociedade!
Mas apesar de
apaixonado, Genaro protelava a data e isso causava estranheza na comunidade e
nas famílias. Os dois costumavam fazer longos passeios pelas margens do Rio
Paranapanema e numa destas esticadas o inevitável aconteceu: Malvina
engravidou!
Moça solteira esperando
nenê era um sério problema e envergonhava todo mundo. E qual seria a
solução? O casamento antes que a
saliência da barriga começasse a aparecer resolveria a questão!
Mas o rapaz estava
indeciso!
A indecisão de Genaro
chamava-se Rosa, moça sofisticada e bonita, filha de poderoso empresário da
cidade. Ele não podia ficar com as duas. A rica, com orgulho ferido não admitia
que uma caipira ficasse com seu amado. Se de um lado Genaro tinha uma doce
mulher que esperava um filho seu, do outra a Rosa, que vingativa e ciumenta
bolara um maquiavélico plano pra se livrar da rival. Á bem da verdade vale
ressaltar que, Genaro forte e bonito, mexia com o imaginário erótico das
mulheres do campo e da cidade. Mas agora o conquistador se encontrava em uma
encruzilhada entre a família de Malvina e a fúria de Rosa. Atormentado pela
dúvida ele não sabia o que fazer até que Rosa, botando pra fora toda sua
maldade contou em detalhes o plano para o amado:
- Você convida Malvina para pescar no Rio
Paranapanema no barco do meu pai que é grande e confortável. Lá você vai encontrar um saco grande e uma
faca. Mate Malvina e jogue-a no rio. As piranhas farão o resto do serviço e
depois de um tempo do desaparecimento da caipira nós nos casamos e viveremos
felizes para sempre. Esta mulher não te merece. – A voz de Rosa era carregada
de ódio e inveja. – Não esqueça
que
no barco você encontrará uma pedra bem pesada e uma corda. Amarre-a no corpo de Malvina para que afunde
para sempre e vá para os quintos dos infernos. Siga minhas instruções e ninguém
ficará sabendo.
Imaginando que Genaro iria
marcar a data mais importante de sua vida, Malvina nem pensou em recusar o
convite do futuro esposo para um romântico passeio de barco. O ser humano é
como a capa de um livro, só se conhece o conteúdo lendo o que tem no seu
interior. Na maioria das vezes as pessoas não se abrem por inteiro. E os
segredos ás vezes assustam.
Numa tarde ensolarada
de verão, Genaro e Malvina balançavam tranquilamente ao sabor das pequenas
ondas no meio do grande rio!
O tempo passou tão depressa
que quando perceberam já era noite e a lua refletia sua palidez nas águas, e
ela moça pura e romântica se jogou nos braços fortes e nus de Genaro. A mão
enorme começou acariciando o pescoço da mulher despida e pronta para horas de
frenéticos momentos de amor e sexo. Em
segundos o sonho de Malvina se transformou em pesadelo quando ela sentiu as
duas mãos do homem amado lhe apertando a garganta. Debatendo-se na tentativa de
se salvar o assassino viu aos poucos seus movimentos se enfraquecerem e o corpo
pender para trás sem vida. A rosa linda e perfumada é inofensiva e admirada e é
protegida por seus espinhos que ferem sem
piedade, assim é o ciúme. A vingança de Rosa finalmente havia se
concretizado.
Genaro, com os olhos
cheios de lágrimas, a colocou no saco, amarrou fortemente com a pedra e a jogou
nas águas profundas. Não usou a faca. Lentamente Malvina desapareceu e para ele
os problemas haviam afundado juntamente com aquela que outrora fora o seu amor.
Agora era só seguir em frente com o plano.
Meia hora depois ele
estava batendo palmas no portão de Chico Matos:
-Boa noite seu Chico,
poderia chamar a Malvina.
Ingenuamente seu Chico
responde:
-Ela não está, entre um
pouco para esperá-la..
-Obrigado seu Chico, eu
volto amanhã, boa noite.
-Boa noite Genaro!
-Ontem ela estava tão
feliz, disse que ia dar umas voltas...
Isso o assustou:
-Mas ela não disse
aonde ia?
-Não, não disse o meu
Deus onde estará minha filhinha?
Depois de muitos dias
de buscas o caso foi encerrado e a vida continuou seu rumo.
Habilmente, Genaro e
Rosa, esperaram mais de um ano para o tão sonhado casamento. A festa foi muita
bonita e o Zico Fotógrafo especialmente contratado para registrar todos os
momentos daquela união com seu profissionalismo tirou muitas fotos! O evento
grandioso tornou-se um acontecimento na cidade coma imprensa local registrando
tudo. Genaro e Rosa partiram rumo a Paris para a lua de mel.
Na segunda feira as
pessoas se enfileiravam nas bancas para ver as fotos dos noivos e a surpresa
foi realmente assustadora! Primeiro se imaginava que fosse apenas um vulto e
depois a imagem da mulher na horizontal segurando um bebê tornou-se
incrivelmente visível. Zico Fotógrafo
acordou com os gritos da família de Rosa. Os pais queriam ver as fotos e
incrédulos notaram que em todas elas aparecia uma mulher com a criança nos
braços e na horizontal, como se estivesse flutuando!
Genaro e Rosa receberam
a notícia bizarra em Paris onde haviam tirado diversas fotos. Correram para
revelar e lá estava a imagem acusadora!
Voltaram à cidade e o
povo só falava nisso em todos os lugares.
Não resistindo à pressão da sociedade e de sua consciência Genaro foi
até a Delegacia e confessou seu crime. Foi condenado por homicídio e ocultação
de cadáver. Morreu de tristeza anos depois na cela do presídio. A viúva se
casou em seguida como se nada tivesse acontecido. Como Genaro assumiu a culpa,
ela nem foi citada no julgamento.
E hoje em noites de lua
cheia, os pescadores avistam uma mulher de branco caminhando sobre as águas com
uma criança no colo cantando canções de ninar!
E quando ela aparece, a
fartura de peixes é certa, segundo os pescadores!
Billy Black ajeita o
chapéu, toma seu café e me diz:
- É isso meu rapaz, a
justiça de Deus é implacável!
Olho para o relógio e
percebo que faltam cinco minutos para a saída do meu ônibus. Corro até o
guichê, a moça sorridente me entrega a passagem e brinca comigo:
-Só sobrou esta: A de
número 13!
Mal sabia ela a
incrível história que acabara de ouvir!
1 Comentários:
Conto interessante. Já havia lido no livro "Gangorra", mas é sempre bom repetir boa leitura. Parabéns, amigo. Sucesso sempre.
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