sábado, 20 de julho de 2013

Eu sei, mas não devia.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outras que não as janelas ao redor.E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir as cortinas.E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho, porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto. A gente se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ser sequer uma planta. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta,e que,gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma. A gente se acostuma demais, mas não devia!

Trecho da crônica de Marina Colasanti.

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