quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Nem tudo o que morre perde a força



 SOMBRAS DO PASSADO
Athayde Martins


As paredes empoeiradas mostram construção simples com  muita praticidade. 
 Na frente, instalados do lado esquerdo os sanitários masculinos, o das mulheres ficam próximos à plataforma de embarque. Depois a tabacaria, a banca com variedades de jornais e revistas, lojinha de miudezas e o bar, onde se toma café preparado de forma rudimentar e sabor inigualável, além, é claro, de bebidas, salgados e sucos naturais. Este pequeno comércio serve as necessidades dos viajantes.
Encostado no bar, do lado direito os sanitários femininos e logo adiante estacionamento para oito ônibus. O guichê único fica nos fundos e trabalha com todas as empresas. Moças simpáticas vendem passagens para os mais variados locais. Esta é a rodoviária da cidade, ponto de chegadas e partidas de pessoas de todas as raças, cores e credos. Uns chegam curiosos e outros partem deixando para trás sempre um coração magoado, um rastro de saudade!
Eu ia partir, mas devido a confusão que fiz com o horário de verão que havia terminado, acabei chegando uma hora mais cedo. Pra matar o tempo resolvi beber algo pra tirar a poeira da garganta. Enquanto o balconista preparava meu café, fiquei olhando as fotos nas paredes: rios, casas, barcos, animais, pessoas, peixes, entre outras. Uma em particular me chamou a atenção: A  de um casamento com  os noivos felizes e ao fundo algo estranho, uma mulher dentro de um saco transparente com  uma criança nos braços. E o mais esquisito é que ela está na horizontal como que flutuando.  Minha curiosidade é maior, não resisto:
-Que foto estranha, o que significa?
Gentilmente o rapaz atrás do balcão responde:
-A história é longa e o Billy Black adora contá-la.
Disse-me isso e apontou para um senhor sentado num banco de madeira encostado na parede. O chapéu de couro cobria-lhe os olhos e só se via seu queixo alongado. Meio temeroso me aproximo:
-O senhor conhece a historia da foto?
Calmamente me diz:
-Todo mundo por aqui conhece, mas é melhor o jovem se sentar...

Obedeci prontamente e me preparei pra ouvir o relato daquele homem cuja voz suave e rouca tornava os fatos ainda mais emocionantes!

“Genaro,  rapaz esforçado que cuidava da Fazenda Vitória, conheceu Malvina, moça bonita e
prendada filha de Chico Matos, homem trabalhador e “meeiro” dos Andradas. Ele se encantou com a beleza da camponesa e de pronto teve o consentimento para início do namoro. As famílias conhecidas facilitavam o relacionamento do casal. O namoro de Genaro e Malvina durou dois anos, tempo prolongado demais para os costumes da época. Com a pressão dos pais não restou ao jovem outra alternativa a não ser oficializar o noivado.
   Agora noivos, podiam planejar o futuro e obviamente constituir uma família com a realização do casamento. Só faltava marcar a data do enlace no civil e na igreja, conforme ditavam as rígidas regras da sociedade!
Mas apesar de apaixonado, Genaro protelava a data e isso causava estranheza na comunidade e nas famílias. Os dois costumavam fazer longos passeios pelas margens do Rio Paranapanema e numa destas esticadas o inevitável aconteceu: Malvina engravidou!
Moça solteira esperando nenê era um sério problema e envergonhava todo mundo. E qual seria a solução?  O casamento antes que a saliência da barriga começasse a aparecer resolveria a questão!
Mas o rapaz estava indeciso!
                  A indecisão de Genaro chamava-se Rosa, moça sofisticada e bonita, filha de poderoso empresário da cidade. Ele não podia ficar com as duas. A rica, com orgulho ferido não admitia que uma caipira ficasse com seu amado. Se de um lado Genaro tinha uma doce mulher que esperava um filho seu, do outra a Rosa, que vingativa e ciumenta bolara um maquiavélico plano pra se livrar da rival. Á bem da verdade vale ressaltar que, Genaro forte e bonito, mexia com o imaginário erótico das mulheres do campo e da cidade. Mas agora o conquistador se encontrava em uma encruzilhada entre a família de Malvina e a fúria de Rosa. Atormentado pela dúvida ele não sabia o que fazer até que Rosa, botando pra fora toda sua maldade contou em detalhes o plano para o amado:
 - Você convida Malvina para pescar no Rio Paranapanema no barco do meu pai que é grande e confortável.  Lá você vai encontrar um saco grande e uma faca. Mate Malvina e jogue-a no rio. As piranhas farão o resto do serviço e depois de um tempo do desaparecimento da caipira nós nos casamos e viveremos felizes para sempre. Esta mulher não te merece. – A voz de Rosa era carregada de ódio e inveja. – Não esqueça que no barco você encontrará uma pedra bem pesada e uma corda.  Amarre-a no corpo de Malvina para que afunde para sempre e vá para os quintos dos infernos. Siga minhas instruções e ninguém ficará sabendo. 

Talvez se Malvina não estivesse grávida Genaro não cometeria tamanha atrocidade! 
                Imaginando que Genaro iria marcar a data mais importante de sua vida, Malvina nem pensou em recusar o convite do futuro esposo para um romântico passeio de barco. O ser humano é como a capa de um livro, só se conhece o conteúdo lendo o que tem no seu interior. Na maioria das vezes as pessoas não se abrem por inteiro. E os segredos ás vezes assustam.
Numa tarde ensolarada de verão, Genaro e Malvina balançavam tranquilamente ao sabor das pequenas ondas no meio do grande rio!
O tempo passou tão depressa que quando perceberam já era noite e a lua refletia sua palidez nas águas, e ela moça pura e romântica se jogou nos braços fortes e nus de Genaro. A mão enorme começou acariciando o pescoço da mulher despida e pronta para horas de frenéticos momentos de amor e sexo.  Em segundos o sonho de Malvina se transformou em pesadelo quando ela sentiu as duas mãos do homem amado lhe apertando a garganta. Debatendo-se na tentativa de se salvar o assassino viu aos poucos seus movimentos se enfraquecerem e o corpo pender para trás sem vida. A rosa linda e perfumada é inofensiva e admirada e é protegida por seus espinhos que ferem sem  piedade, assim é o ciúme. A vingança de Rosa finalmente havia se concretizado.
Genaro, com os olhos cheios de lágrimas, a colocou no saco, amarrou fortemente com a pedra e a jogou nas águas profundas. Não usou a faca. Lentamente Malvina desapareceu e para ele os problemas haviam afundado juntamente com aquela que outrora fora o seu amor. Agora era só seguir em frente com o plano.
Meia hora depois ele estava batendo palmas no portão de Chico Matos:
-Boa noite seu Chico, poderia chamar a Malvina.
Ingenuamente seu Chico responde:
-Ela não está, entre um pouco para esperá-la..

-Obrigado seu Chico, eu volto amanhã, boa noite.
-Boa noite Genaro!
Na manhã seguinte a notícia do desaparecimento de Malvina corria de boca em boca e não demorou pra cair nos ouvidos de Genaro. Ele selou o cavalo e galopou rumo á casa da família de Matos. Seu fingimento enganou a todos e foi ele próprio que se prontificou a ir até a casa dos Andradas, único lugar onde se encontrava um telefone. Ligou para a polícia comunicando os fatos. Dona Santa, mãe de Malvina estava desolada:
-Ontem ela estava tão feliz, disse que ia dar umas voltas...
Isso o assustou:
-Mas ela não disse aonde ia?
-Não, não disse o meu Deus onde estará minha filhinha?
Depois de muitos dias de buscas o caso foi encerrado e a vida continuou seu rumo.
Habilmente, Genaro e Rosa, esperaram mais de um ano para o tão sonhado casamento. A festa foi muita bonita e o Zico Fotógrafo especialmente contratado para registrar todos os momentos daquela união com seu profissionalismo tirou muitas fotos! O evento grandioso tornou-se um acontecimento na cidade coma imprensa local registrando tudo. Genaro e Rosa partiram rumo a Paris para a lua de mel.
Na segunda feira as pessoas se enfileiravam nas bancas para ver as fotos dos noivos e a surpresa foi realmente assustadora! Primeiro se imaginava que fosse apenas um vulto e depois a imagem da mulher na horizontal segurando um bebê tornou-se incrivelmente visível.  Zico Fotógrafo acordou com os gritos da família de Rosa. Os pais queriam ver as fotos e incrédulos notaram que em todas elas aparecia uma mulher com a criança nos braços e na horizontal, como se estivesse flutuando!
Genaro e Rosa receberam a notícia bizarra em Paris onde haviam tirado diversas fotos. Correram para revelar e lá estava a imagem acusadora!

Voltaram à cidade e o povo só falava nisso em todos os lugares.  Não resistindo à pressão da sociedade e de sua consciência Genaro foi até a Delegacia e confessou seu crime. Foi condenado por homicídio e ocultação de cadáver. Morreu de tristeza anos depois na cela do presídio. A viúva se casou em seguida como se nada tivesse acontecido. Como Genaro assumiu a culpa, ela nem foi citada no julgamento.
E hoje em noites de lua cheia, os pescadores avistam uma mulher de branco caminhando sobre as águas com uma criança no colo cantando canções de ninar!
E quando ela aparece, a fartura de peixes é certa, segundo os pescadores!
Billy Black ajeita o chapéu, toma seu café e me diz:
- É isso meu rapaz, a justiça de Deus é implacável!
Olho para o relógio e percebo que faltam cinco minutos para a saída do meu ônibus. Corro até o guichê, a moça sorridente me entrega a passagem e brinca comigo:
-Só sobrou esta: A de número 13!
Mal sabia ela a incrível história que acabara de ouvir!

Um comentário:

  1. Conto interessante. Já havia lido no livro "Gangorra", mas é sempre bom repetir boa leitura. Parabéns, amigo. Sucesso sempre.

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